sábado, 22 de agosto de 2009

Carta a Paullus.

Carta a Paullus


Nao me surpreendi quando este fraterno amigo referiu sua admiraçao há pouco tempo numa audiçao pública, da preocupaçao de algumas pessoas que temiam sentirem-se preteridas do uso do novo centro catequético, ainda em construçao. É bem possível entender tudo isso, e digo tudo isso porque há muito de complexo. Te falarei o mais amiúde possível do que penso dessas reaçoes, dessas verdadeiras incongruências sociais. Isso...vivemos incongruencias sociais...
Primeiro, é preciso que se diga que não temos uma identidade. Tudo virou um "poço de Bagé" . Faço essa alusão de um termo gauchesco, para me fazer entender de que o dinamismo é uma consequencia muito nova, bem mais recente, democratica até. Mas nao é aí que reside a problematica. Quando a propria igreja católica referenciava nossa identidade, e aqui lembro de um fenomeno que está ocorrendo na Rússia com conversões em massa e retorno aos cultos, a nossa vida passava por caminhos, digamos, mais seguros. Repito. As coisas mudaram numa configuraçao dificil de entender, mas o bojo do que quero dizer está de permeio a tudo isso, e remonta a tempos, que ao menos eu, lembro ainda de criança.
Somos todos, no mínimo, por assim dizer, toscos. Toscos e despreparados. E arrogantes também.
Há, de fato, uma aura sobre todos nós daqui, que paira, sei deus desde quando... Já usei tempos atrás esse termo ""aura" para designar aquilo que me parece todos nós carregamos em nossas almas e que está estampado em nossos rostos, e também em nossas atitudes. Se o caldo entornou nao sei, mas o que sei é que esse peso, muitos de nós ainda carregam. E ele custa muito. Esse peso, redundantamente nos põe a nocaute, tamanha é nossa inércia. Caminhamos como pamonhas. E nem sei o que é pamonha..., mas acho que é por aí.

Aqui, é proibido ser o que se quer ser. Porque o que vale de verdade é ter. Mas ter para si. E só. Mas há que se regredir mais para trás. Nossa miscigenaçao européia trouxe no dna o medo e a crença de fantasmas. Opressão em cima de opressão. Nossos caboclos, descendentes de bugres e negros eram "" camaradas"" - para referir um termo russo - , dos portugueses maus e bandidos. Porque quem ia campo adentro eram bandidos tirados das cadeias lusitanas. Aqui, reside o inicio dessa problematica, que resultou numa neurose, que é dificil de entender como se formou. Só pode ser aqui, porque antes tudo se resumia à selva e alguns indígenas.

Os populares, os mais antigos, especialmente, lembram de certa passagem de Joao Maria, combatente da guerra do Contestado, e que tinha fama de santo e curador, e que passando por Rio Azul passou o olhar pela terra e a amaldiçoou. Eu acredito em maldição. Pode ser que sim, pode ser que nao. Se voce acredita em maldiçao, deve saber como eu, que ela se perpetua de geraçao em geraçao, no mais abominável ato desumano e contra as regras da natureza.

Acho que estou chegando no ponto crucial. Em que pese o rigor de uma igreja casada com os governos haver dominado muitas pessoas por aqui, há um elemento antropológico que nao pode ser desconsiderado. Os coronéis. Isso...Eles comandavam a economia do Municipio, e estabeleciam regras sociais até aceitáveis, embora o relho, o chicote estivesse sempre à mostra. Quer saber o que penso disso ? Que uma sociedade precisa de um referencial. É mais ou menos como vivem as pessoas em favelas dominadas pelo trafico de drogas. Recebem proteçao e tem garantia de lazer, vida social e de outras iniciativas. Pois quando o mundo vivia nas décadas de 60 e 70, o que a França já experimentara há mais de 100 anos, aqui nós ficamos desprotegidos dessa elite, que ao ver os pinheiros se acabarem, foram embora. Pode residir aqui a questão neurótica que repercute nos dias hoje ainda.

Desamparados dessa forma, surgiu na década de 60, da qual eu faço parte, a pior geraçao naquilo que se refere às iniciativas, que hoje sao pomposamente chamadas de labor solidário. Surgiu ali a nossa caipirice, a nossa escancarada covardia, o medo que ainda hoje temos das pessoas e formou-se uma cultura individualista e até bruta. Bruta no sentido daquilo que já disse o que somos. Toscos. Enfim estávamos livres de alguns dominios e prontos para a selvageria. Voltamos naquele momento da historia à Idade da Pedra. Pois só como exemplo, lembro da imensa dificuldade de uma diretora de escola em dominar seus alunos, que mais pareciam animais famintos e selvagens. Entao, entre o tempo da palmatória e dos computadores, vivemos esse hiato desgraçado. Quer saber de uma das consequencias ? Hoje, um aluno de faculdade de medicina perde para quem há 50 anos atrás só tinha o madureza ginasial. Para um aluno de faculdade, hoje, a vírgula está mais para um simbolo paleontologico.

Os artífices dessa cultura que ainda se perpetua, também estabeleceram regras, sem chicotes e sem relhos. A de uma brutalidade ainda mais animalesca, que ofereceu e oferece ainda mais o medo. Disseminou-se uma ideia do contra o belo, contra a educaçao, contra as boas maneiras, e os velhinhos, seus pais, assustaram-se, como seus irmaozinhos passaram a imitá-los. Há um papel de fundo sexual nesse contexto, e que eu nao domino. Seria necessário um estudo mais profundo. As pessoas se isolaram e alguns grupelhos gritaram sucesso. E essa cultura é vivida até hoje. Sim. Até hoje.

Assim, quando o trem deixou de por aqui passar e o cinema entrou em fase de decadencia, até o seu fim, logo depois as sociedades do 14 de Julho e do Operário desmobilizaram-se. A tv chegou avassalando, o regime de 64 terminou, e nossos líderes, ou melhor, nossos rinocerontes saíram vitoriosos.
Que jogue em mim a primeira pedra quem nao teve medo de usar óculos escuros nas décadas de 70, 80 e 90, porque isso era uma afronta. Ninguém dizia isso, claro. Entendam. Ninguem o fazia, como muitas outras coisas eram abominadas. Por isso eu sempre repito em meus escritos. Aqui há tantos poetas e profetas trancafiados em casa. ..Porque essa maldita "aura" ainda hoje impera. Qualquer nova atitude, qualquer novidade é acompanhada de receio, medo, desconfiança, muita inveja e mal olhado. Pronto. Criei a teoria da turma dos rinocerontes. Eles sao os culpados, Paullus. Por isso, os irmaozinhos deles te perguntam....se seria sensato, mesmo sem haver contribuido em dinheiro, usar as dependencias do novo centro catequetico.

As elites que sucederam àquelas antigas, aquelas dos exploradores que prefeririam ser chamadas de extrativistas, é caótica, para dizer o menos. Não saíram à frente, nao lideraram, nada há em registro de memória que possa ser lembrado num clique de pensamento. Esta elite formada de umas poucas famílias abastadas e de outras que hoje podem até estar em alguma coluna social, apequenaram-se. Seu parco conhecimento é dividido com medo, e geralmente em barracas de pescarias. Vivem em casulos. Seus casulos certamente possuem alçapões, bunkers onde se possa esconder metais, moedas, títulos e talões de cheques. Se vivem felizes, nao sei. O que sei é que muitos nem usufruem das possibilidades que tem. E mais. No fundo também sao vítimas disso que chamo de neurose, daquele movimento rinocerontesco. Este é um(a) estigma.

Quer saber, Paullus, uma consequencia bem nítida de tudo isso ?
Já viveu uma possibilidade de acompanhar uma campanha eleitoral com grupos apartados. Estranho ? Claro que nao. Normal, normalíssimo ? Nunca. O que para os orientais é escola de aprendizado - o isolamento - , aqui é oficina de trapaças e artimanhas. Nao é de se acusar ninguém. É de chorar. É de se chorar muito. É de orar e laborar. Ora et labora. E de se ver no que dá. Tentar, ao menos. Neste aspecto, poucos grupos tem a independencia de mudar esse estado de coisas. A igrejá é um deles. Vejo em sua missão, Paullus de Indonesia, um desafio nada diferente do de Paulo de Tarso. Talvez até pior.
Só para terminar. Da missa, nao rezei nem um terço....

Daqui, de meu casulo, envio-te um fraterno abraço !



Teobaldo Mesquita
teobaldomesquita@uol.com.br

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